terça-feira, 2 de maio de 2017

Mélenchon, a boiada e a dignidade política, por Jacques Sapir

28/4/2017, Jacques SapirRouseurope, Hypotheses













Desde que se divulgaram os resultados do primeiro turno da eleição presidencial [na França], quer dizer, desde a noite do domingo passado, Jean-Luc Mélenchon vem enfrentando uma chuva de críticas tão indecentes quanto sem justificativa. A causa é a decisão que anunciou, de não tomar partido no duelo entre Mme. Marine le Pen e M. Emmanuel Macron. Por isso, Mélenchon está sendo acusado de todos os males, num movimento de histeria coletiva no qual os fatos são manipulados de modo vergonhoso.

Mais uma vez, é a boiada de jornalistas contratados para matar. Dessa vez, ativa com extraordinária falta de vergonha, o que deixa à vista o seu lado político a favor de todas as escolhas retrógradas propagandeadas por Emmanuel Macron. Esse "eu-apelismo" [fr. "jappellisme"], para usar uma neologia inventada por alguns jornalistas, faz ver a transformação massiva, embora, claro, não total, dos jornalistas em propagandistas. Tivemos o aperitivo, na campanha para o referendo de 2005.

Várias vezes critiquei Jean-Luc Mélenchon, pela imprensa, ou por esse blog. Continuo e continuarei a criticá-lo numa série de pontos. Mas sinto-me obrigado a dizer aqui que o apoio, contra aquela boiada 'jornalística' sedenta de sangue, que baba e que quer realmente morder. Apoio Mélenchon porque defendo o direito dele de recusar a escolha que lhe foi apresentada. Pode-se criticar sua posição, pode-se debater muito. Nada porém justifica os ataques odiosos de que é alvo, nem a campanha de assassinato de reputação que sofrem ele e seu movimento "France Insoumise" [França Insubmissa].

Porque, sejam quais forem as críticas que se façam a Mme Marine le Pen, e já fiz várias nesse blog, a decência obrigaria aquela mesma boiada a declarar que nada há de "fascista", nem no programa dela nem no comportamento de seu movimento. Não há milícias armadas pelas ruas. E as que há vêm, já há anos de outro lugar, que não é a Frente Nacional. Pretender que a Frente Nacional seria "anti-Republicana" é expor-se a uma evidente contradição: se esse movimento cria qualquer tipo de ameaça contra a República, teria de ser proibido, e seus dirigentes, presos. Se não aconteceu, é sinal de que a Frente Nacional não ameaça a República.

Ao se fazer-ver 'enrolados na bandeira' e ao tentarem abrigar-se sob a História, a boiada 'jornalística' e seus muitos teclados alugados encontram terreno firme a partir do qual atacar. 

O programa defendido por Mme. Marine le Pen é programa populista, com lados bons e também com lados ruins. É programa soberanista, ainda que inclua derrapagens, como a questão do direito do solo e da proteção social. Podemos contestá-lo. Podemos até reprová-lo. Mas fazer desse programa um espantalho [para empurrar eleitores na direção de Macron], e ridículo no mais alto grau. Já não estamos na Alemanha de 1933. Já não estamos sequer na França de 2002. Tudo mudou profundamente, exceto, parece, a inconsciência e a ignorância crassas dessa boiada babenta que aí está, tocando a mesma velha partitura que já ouvimos quando do referendo de 2005. Quando, vale lembrar, o 'ideário' da boiada 'jornalística' foi derrotado!

O programa de Emmanuel Macron, por seu lado, não é de causar inveja a ninguém, para dizer o mínimo. É programa de rendição e submissão à globalização e braço armado da globalização, que é a política do governo alemão. É programa de destruição do Direito do Trabalho, programa de uberização da sociedade. Além disso, é programa que traz um projeto de sociedade no qual os indivíduos seriam completamente atomizados, entregues a lei do mercado e do "pagamento frio no guichê", do acordado sobre o legislado. Esse programa, sim, provoca graves inquietações. E são inquietações legítimas. São inquietações de tal ordem que absolutamente proíbem que se vote a favor de Emmanuel Macron. 

É perfeitamente compreensível que tantos comecem a considerar que o programa de Macron cria para a França perigo muito mais grave e mais imediato que o de Mme Marine le Pen e, em todos os casos, temos de poder ouvir essas vozes! Isso absolutamente não converte os que defendem esse direito em apoiadores de algum fascismo, tanto mais imaginário e fantasiado quanto mais aparece denunciado com 'fervor' suposto democrático jamais visto. 

O candidato Macron, esse sim, finge que seria portador de "valores" radicalmente diversos dos de sua adversária. E ao fazê-lo, comprova sobretudo que confunde os valores e os princípios, e que não sabe (sequer) do que fala. E o tom berrado histérico dos discursos pró-Macron, também ele, é altamente inquietante.

Não se trata aqui de manifestar meu voto. Além de o lugar não ser adequado, não me sinto obrigado a fazê-lo, dado que não tenho qualquer responsabilidade na vida política, sindical ou associativa. E, tanto quanto me consta, o segredo do voto é direito democrático. Esse é um dos "princípios" da República, não um "valor" como Emmanuel Macron anda inventado.

Mas, quando um homem como Jean-Luc Mélenchon vê-se injustamente atacado e ultrajantemente caricaturado, quando a mídia-empresa passa a operar como serviço de propaganda, há grave risco, muito real, de totalitarismo. Só que o risco vem, muito mais, do lado dos apoiadores de Emmanuel Macron, que de Marine le Pen. Então é meu dever apoiar Jean-Luc Mélenchon. Nada disso apaga as críticas que já lhe fiz e possa vir a fazer-lhe (e vale a inversa, quanto às críticas que ele fez a mim e que venha a fazer). 

A posição de Mélenchon é posição digna e corajosa, perfeitamente compreensível, mesmo que não a adotemos inteiramente. Declará-lo assim, publicamente é questão de honra política, mas também é questão de saúde pública. Sem honra política e insalubres são os comportamentos da boiada 'jornalística'. Essa boiada é, sim, verdadeiro e grave risco a que está exposta a democracia na França. Mais dia menos dia, será preciso limpar os estábulos de Áugias.*****



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